quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Chico Buarque de Samaria


No mês dos 64 anos de um dos mais respeitados artistas da nossa cultura brasileira, Francisco Buarque de Holanda, resolvi aceitar o desafio de navegar numa aventura transcultural sobre a maneira como Jesus iria relacionar-se com a nossa cultura brasileira caso vivesse em nossos tempos. Alias, será que Ele sairia de Israel, da sua cultura, será que se daria ao trabalho sentar-se em nossas rodas de conversa, em nossas praças, na beira do mar ou dos rios? Será que Ele ouviria o que temos a dizer, escrever, cantar, tocar e encenar do nosso jeito Tupiniquim? Isso que tentarei responder no final!

Bem, sei que não estou sozinho no meio evangélico brasileiro quando me disponho a me abrir às manifestações culturais populares do nosso país, mas também sei que não estou com a maioria, nem com o mais populares no meio. Lembro-me agora que os princípios batistas que, quando falam do governo da igreja, dizem que "nem a maioria, nem a minoria, nem tão pouco a unanimidade, refletem necessariamente a vontade divina"[1].

Sei que Ed René Kivitz me defenderia, caso fosse acusado de heresia, lançando mão de dois princípios da Reforma, a saber: a "Graça Comum" e o a "Imago Dei". Ele diria que a "Graça Comum" é a base para pensarmos que "a bondade, o governo e a instrumentalidade de Deus"[2] também influenciam pessoas que estão" à parte do conhecimento e do compromisso com o todo da revelação bíblica"[3] e a "Imago Dei" nos garantiria que todo ser humano é "capaz de expressar o ético e o estético divino"[4]. Sei também que Ariovaldo Ramos me defenderia, baseado em Mateus 28:19, dizendo que existe uma distinção entre a conversão de inúmeros indivíduos de uma nação e a conversão de uma nação como complexo cultural, por tanto, diria ele: "reconhecemos que uma nação está se convertendo quando esta nação passa a usar sua maneira própria de contar as suas mazelas para falar dos benefícios de servir a Cristo "[5].

Os dois argumentos são excelentes e são base para minha argumentação teológica, contudo, me parece que o maior motivo pelo qual o Brasil não experimenta esta abertura teológica-cultura não diz respeito apenas a idéia de que alguém que não tenha conhecimento bíblico não possa fazer algo interessante(Graça comum e Imago Dei) ou na idéia de demonização da nossa própria cultura local(Conversão da nação) e sim no fato de que a maioria cristã fundamentalista tem a idéia de que eles mesmo representam a matriz pronta e acabada da maneira correta de viver e servir a Cristo e que andar por outros caminhos significa literalmente desviar do "Caminho".

O circo Místico
(Chico Buarque - Edu Lobo)

Não
Não sei se é um truque banal
Se um invisível cordão
Sustenta a vida real

Cordas de uma orquestra
Sombras de um artista
Palcos de um planeta
E as dançarinas no grande final

Chove tanta flor
Que, sem refletir
Um ardoroso espectador
Vira colibri

Qual
Não sei se é nova ilusão
Se após o salto mortal
Existe outra encarnação

Membros de um elenco
Malas de um destino
Partes de uma orquestra
Duas meninas no imenso vagão

Negro refletor
Flores de organdi
E o grito do homem voador
Ao cair em si

Não sei se é vida real
Um invisível cordão
Após o salto mortal
1983 © - Marola Edições Musicais Ltda.

A música de Chico Buarque e Edu Lobo retrata na linguagem da Música Popular Brasileira aquilo que é inerente a todo ser humano no que diz respeito ao mistério da vida, da morte e do destino do homem. Temas profundamente relacionados à teologia e a humanidade em si! Mas os protestantes fundamentalistas teimam em restringir ao seu espaço social religioso.

Quando olho para o questionamento de Chico Buarque, uma passagem bíblica me vem mente e quero compartilhá-la. A famosa passagem da mulher samaritana que questiona a Cristo a respeito do lugar correto para adoração. Tradicionalmente a passagem é conhecida como aquela que começa em João no capítulo quatro, versículo primeiro e vai até o versículo trinta. Mas para mim a perícope começa quando Jesus fica sabendo que os fariseus tomaram conhecimento de onde Ele estava e, por tanto, Ele decide sair da Judéia e ir para Galiléia[6]. Para mim essa história começa quando Jesus foge dos religiosos que se pretendem donos da verdade e vai para outro lugar, outros caminhos.

O caminho de Jesus sempre teve abertura para encontros com outras culturas, outras opiniões e outras maneiras de ver. Não é sem motivo que ele tem um encontro com esta mulher da cidade de Samaria, mas o que representa Samaria? Se analisarmos a história monárquica de Israel, especialmente a divisão entre o Reino do Norte, Israel, com a capital em Samaria e o Reino do Sul, Judá, com capital em Jerusalém entenderemos que o clima é de guerra entre estes povos, antes homônimos e agora antagônicos. Esta história dá conta que tudo estava pronto para que uma guerra fosse deflagrada e Deus escolhe um profeta, Semaías, para que a tal guerra não ocorresse, no entanto, desde então "os judeus não se dão com os samaritanos" [7].

Imagine agora que Jesus passou mais de trinta anos ouvindo seus amigos e homens mais velhos dizer que os samaritanos não prestavam, imagine que quando Ele visitava o templo e conversava com os doutores da lei e eles diziam que os samaritanos não sabem onde adorar, pois segundo eles somente em Jerusalém se poderia adorar, o que é desmentido mais tarde.

Para responder aos questionamentos daquele ser humano Jesus não fez caso da condição dela de mulher e de samaritana, nem tão pouco da dEle de homem e judeu, a necessidade do outro no que tange a conhecimento da maneira correta de agradar a Deus moveu Jesus de tão grande compaixão que Ele transpôs todas as barreiras sociais que se interpunham entre eles.
Recapitulando: Aquele ser humano era uma mulher, ela era samaritana e mais adiante vemos que ela não tinha uma vida afetiva muito estável[8] e nada disso, segundo Jesus, seria impedimento para que ela ouvisse e fosse ouvida a respeito da maneira mais correta de adorar a Deus, nada disso seria impedimento para que houvesse um diálogo entre as matrizes de culturas diferentes a respeito da necessidade comum, de falar de Deus.

Por tanto eu defendo que nós, cristãos protestantes brasileiros adotemos uma postura mais aberta e estejamos prontos a ouvir tudo aquilo que nosso povo tem a dizer e a questionar, não com o interesse de detectarmos seus erros mais patentes e acusá-los, antes no desejo de nos aproximarmos cheios de compaixão e respeito, prontos a saciá-los de uma água que não se esgota. Precisamos fazer com que este povo não tenha mais sede e não tente mais buscar saciar sua sede nos poços de Jacó. Precisamos fazer com que essas pessoas tenham dentro em si uma fonte a jorrar, Para isso precisamos dar mais ouvidos a cultura popular brasileira, precisamos ouvir mais MPB!

Marcos Nunes
Analista de Sistemas SAP
Bacharel em Teologia
Cursando Licenciatura em Teologia pelo MEC


[1] Cathryn Smth, Princípios Batistas, Ponto 4.4 Igreja.Seu governo
[2] Ed René Kivitz, Outra Espiritualidade, Pág 227
[3] Ed René Kivitz, Outra Espiritualidade, Pág 227
[4] Ed René Kivitz, Outra Espiritualidade, Pág 228
[5] DVD Nossa Música Brasileira – vol 2, Sepal – Palestra de Ariovaldo Ramos
[6] João 4:1-3
[7] II Crônicas 11:1-4, João 4:9
[8] João 4:16-18

Nenhum comentário:

Postar um comentário